O Núcleo de Pesquisas sobre Pactos Político-Territoriais e Desenvolvimento
Juliana Nicoletti Ribeiro
Pesquisadora do NUPACT, mestranda pelo Programa de Pós Graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense.
Recentemente, assistimos às investidas do presidente Jair Bolsonaro na região Nordeste, com a inauguração de adutoras e de um trecho do Projeto de Integração do Rio São Francisco. Esses eventos se coadunam com o aumento de sua popularidade na região, considerado tributário do auxílio emergencial. Discussões acaloradas sobre o significado político da pauta das desigualdades têm sido suscitadas no atual cenário de crise econômica, política e sanitária. Essas desigualdades geralmente se expressam por meio de desigualdades territoriais, e podem ser instrumentalizadas no reavivamento de regionalismos.
Com o aprofundamento da crise econômica vigente, para além de atender aos interesses partidários, compreender as disparidades e conflitos regionais no Brasil são basilares para a continuidade dos governos nacionais. No caso da região Nordeste, a centralização das políticas para o desenvolvimento regional e combate às secas inaugurou uma relação particular entre os representantes dos estados nordestinos e a União. Se contabilizarmos os diversos órgãos que foram criados com o objetivo de resolver a problemática das secas e incentivar o avanço da economia regional (os conhecidos órgãos de planejamento regional, como a Sudene; além de instituições responsáveis por obras de infraestrutura relativas à distribuição dos recursos hídricos, como o DNOCS, que, mesmo sendo um órgão com suposta atuação por todo o território nacional, concentrou seus esforços na zona semiárida nordestina), é possível constatar que a “questão nordestina” é indissociável das ações executadas pelo Governo Federal na região.
A “questão nordestina” surgiu antes mesmo da institucionalização da região Nordeste como tal; representou a nacionalização de questões regionais, e deu azo a uma forma de regionalismo peculiar. A problemática persistiu após a redemocratização, e adquiriu novos contornos.
Fernando Henrique Cardoso, no seu primeiro ano como presidente da República, discursou que o “Nordeste também já tem rumo. O Nordeste, hoje, não precisa mais reprisar as suas mazelas. Precisa é que se cuide delas. E cuidar delas é um esforço coletivo nacional. Não é apenas o esforço da Região. É uma decisão do Brasil”. A fala estava relacionada a uma série de medidas planejadas pelo então governo para avançar uma agenda econômica no Nordeste, pautada no turismo e irrigação. As políticas adotadas buscaram atender aos problemas enfrentados na região a partir de medidas unificadas, desconsiderando as clivagens entre os estados e municípios.
Essa abordagem não teve os desdobramentos esperados. Em 1995, o então presidente já falava das dificuldades enfrentadas para acomodar os interesses, frequentemente destoantes, das lideranças políticas nordestinas. Conforme escreveu em seus Diários da Presidência, em uma tentativa de aconselhar Cícero Lucena, político paraibano nomeado secretário de políticas regionais, sobre como lidar com os impasses na estrutura administrativa do órgão (no caso a SEPRE – Secretaria Especial de Políticas Regionais), afirmou que “o Nordeste é como a América Latina — não existe. O que existem são vários estados, assim como existem vários países, cada um com os seus problemas”.
Asserção evidentemente polêmica, mas que dava indícios dos diversos desgastes e contratempos que a relação de FHC com os representantes dos estados nordestinos sofreria. A Transposição do Rio São Francisco (hoje denominada Projeto de Integração do São Francisco) foi um desses reveses que persistiram durante toda a presidência de Fernando Henrique. Foi alvo de desavenças com o conhecido político baiano Antônio Carlos Magalhães (que chegou a se ausentar da posse de Fernando Bezerra como ministro da Integração Nacional em 1999, já que Bezerra era abertamente favorável ao empreendimento e sua nomeação indicava para a busca de meios que viabilizassem o projeto) e, consequentemente, com a classe política da Bahia, que era opositora ferrenha da transposição. A oscilante história do empreendimento durante a presidência de FHC terminou em seu penúltimo ano de mandato, em 2001, sendo os planos da transposição substituídos pela revitalização do rio e criação da CBHSF (Comitê de Bacia Hidrográfica do São Francisco). Outros conflitos entre os estados nordestinos ocorreram logo no início do seu mandato, como a disputa pela instalação de uma refinaria da Petrobrás no Nordeste, com Bahia, Pernambuco, Ceará e Rio Grande do Norte demandando sua construção.
Luís Inácio Lula da Silva se esforçou para destoar dos seus adversários e antecessores políticos (tanto Fernando Henrique Cardoso, como também o principal rival de Lula, José Serra, eram paulistas, fato que relembrou de maneira recorrente durante sua campanha ao mobilizar uma identidade nordestina); elegeu-se, em 2002, declarando que o Nordeste seria a “prioridade” do seu governo, por mais que, no caso dessa eleição, tenha obtido quantidade de votos muito mais significativa no Sudeste e Sul.
Quando falou de Nordeste, referiu-se, mais enfaticamente, ao semiárido nordestino. Para ele, se alguns julgam a fome e a sede como consequências inerentes às características climáticas do sertão, o então presidente enfatizou que a contínua existência desses infortúnios foi uma escolha política dos “coronéis” que ditam os rumos das políticas na região, e não uma fatalidade. Durante sua primeira campanha, prometeu que traria de volta a Sudene (Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste, extinta em 2001 por FHC) como um esforço para equilibrar políticas anteriores que desfavoreceram a região.
Em 2006, elegeu-se com o deslocamento de sua base eleitoral, que se deslocou do Centro- Sul para o Norte e Nordeste. Esse fato deixou como herança o estabelecimento de governos do PT e de partidos aliados em um número considerável de estados do Nordeste, predomínio que continuou durante os governos de Dilma Roussef. A transposição, que apareceu de forma tímida no pleito de 2002, pois não fazia parte do seu plano de governo, passou a ser enfatizada como prioridade e hoje é considerada símbolo do lulismo. Mais importante ainda, Lula encontrou mecanismos para acomodar os conflitos entre os estados nordestinos e possibilitar uma aparente coesão política na região.
Os eventos descritos anteriormente apontam como os governos instrumentalizaram o regionalismo de maneira diferenciada. A contínua interferência direta da União sugere que a “questão nordestina” continua a fazer parte do imaginário dos governantes do País. Resta questionar qual será o futuro dessas questões regionais à luz das novas configurações político-partidárias que se estabelecem, além do cenário de incerteza econômica.
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